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Fórum das Águas participa de audiência pública para discutir o saneamento

No dia 31 de março de 2025, às 13:30, ocorreu na plenária da Câmara Municipal de Manaus (CMM), uma audiência pública chamada pelo vereador José Ricardo (Partido dos Trabalhadores) com o objetivo de discutir o valor considerado abusivo dos serviços de água e esgoto cobrados pela empresa concessionária do saneamento em Manaus, a Aegea – localmente conhecida como Águas de Manaus.

Entre os parlamentares presentes, estiveram os vereadores José Ricardo, Rodrigo Guedes (Progressistas), Pai Amado (Avante) e Sérgio Baré (Partido da Renovação Democrática). Foram convidados para compor a mesa os senhores Elson Andrade Ferreira Júnior, diretor-presidente da Ageman (Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados do Município de Manaus); Pedro Augusto de Freitas, presidente da Águas de Manaus;  Lincoln Alencar de Queiroz, promotor de justiça do Ministério Público do Estado do Amazonas; Inaldo Seixas Cruz, representante do Conselho Regional de Economia; além de Sandoval Alves Rocha, que representava a sociedade civil organizada pelo Fórum das Águas Amazonense.

Manaus fala 

Ao iniciar os trabalhos da audiência pública, os vereadores colocaram questões que deveriam ser respondidas pelos representantes da empresa e da agência reguladora responsável por fiscalizar a prestação de serviços da concessionária. Em linhas gerais, os vereadores questionaram:

1) Houve um reajuste de 12% do valor da tarifa de água, com previsão de outro aumento de 42% no valor geral da tarifa (lembrando que o esgoto é cobrado com base no consumo de água, representando 75% do valor da tarifa de água). Qual a base de cálculo desse reajuste?

2) Outra pergunta dizia respeito às metas da empresa, conforme constam no contrato de concessão. O vereador Zé Ricardo constata que as metas diminuem com o passar do tempo. Segundo o vereador, a meta de esgoto, por exemplo, baixou de 90 % para 80 %. Não obstante, a empresa recebe investimentos e infraestruturas novas financiadas pelo dinheiro público. Qual o real percentual de cobertura de água e esgoto que deve ser garantida em contrato? O contrato teve alterações? Como isso é negociado ano a ano?

3) Os vereadores chamaram atenção sobre as condições de transparência e fiscalização do contrato de concessão. O que está sendo feito sobre os relatórios entregues pela empresa à prefeitura de Manaus? Podemos ter acesso a essas informações? O vereador Zé Ricardo informou ao diretor da Ageman que já havia solicitado os relatórios entregues pela empresa nos últimos 5 anos.

4) Também foi questionado o valor da tarifa de água de Manaus em comparação com outras cidades. Porque a água em Manaus é tão cara, apesar da aparente abundância de recursos hídricos na região?

Sobre este tópico, o representante do Conselho Regional de Economia posteriormente pontuou que o valor das tarifas de água em Manaus também prejudica pequenos empresários e tem valor superior à de outras capitais, não havendo modicidade nem para o caso da tarifa comercial.

5) O quinto questionamento tinha a ver com a cobrança da tarifa de esgoto, sobretudo em casos onde há rede disponível, mas não há ligação com as residências. A presença da rede nos bairros – mesmo sem interligação com as casas – dá direito à cobrança da taxa de esgoto? Se sim, para onde está indo o esgoto coletado? A empresa pode cobrar taxa sobre esgoto coletado que não é tratado em Estação de Tratamento?

6) Uma última questão envolvia o licenciamento das Estações de Tratamento de Esgoto, pois conforme a lei federal 14.026, que atualizou o marco do saneamento em 2020, a construção dessas infraestruturas deveria levar em conta a capacidade de pagamento da população pelo serviço que será cobrado. Isso está sendo levado em consideração com a cobrança da taxa de esgoto?

Após essa primeira bateria de perguntas, os vereadores presentes ainda comentaram sobre alguns aspectos do serviço prestado pela empresa, sobretudo no que tange às obras de implementação da rede de esgoto que tem causado transtornos em vários bairros, haja visto que não há sintonia entre a Aegea (que danifica as vias para instalar tubulações) e a prefeitura (que deveria cobrir as fendas deixadas pela empresa). Assim, sendo, o vereador Pai Amado questionou a Ageman sobre os prazos legais para atender o chamado dos moradores que tiveram suas ruas destruídas por obras da empresa.

O vereador Rodrigo Guedes chamou atenção para os resultados da CPI do saneamento de 2022, em que ficou acordado que a taxa de esgoto só seria cobrada se houvesse o cumprimento das quatro etapas do tratamento de esgoto – coleta, transporte, tratamento e despejo. Dito isto, foi questionado: para onde vai o esgoto coletado?

Além dos nomes citados, estavam presentes diversas lideranças de comunidades como o conjunto residencial Viver Melhor e bairros como Compensa, Petrópolis, São Francisco e Jorge Teixeira. Os moradores desses bairros tiveram a oportunidade de falar para a plenária e trazer exemplos sobre questões como a má qualidade dos serviços de saneamento, tubulações obstruídas, vazamento de esgoto a céu aberto, obras inconclusas nos bairros e interrupções arbitrárias no abastecimento. É também comum que famílias que optam pelo consumo de água mineral devido à má qualidade de água que chega às torneiras, o que traz sérios impactos ao orçamento doméstico, como apareceu no relato de uma moradora do bairro Petrópolis.

A audiência era transmitida pelo Youtube, onde pessoas que moram em áreas prejudicadas também faziam comentários. Em certo momento, uma moradora do bairro da Redenção escreveu indignada:

Até agora ninguém falou a desgraça desta Empresa está fazendo com nosso Conjunto Augusto Montenegro. ​​Implantam cano de 150 e não supre a necessidade da Comunidade, ainda não conectam com as casas, quando chove as fezes ficam a céu aberto. ​​Fizeram uma canalização que não bateu o nível, volta as fezes para o meio da Rua. As empresas terceirizadas são uma vergonha, o asfalto é somente um dedo, com uma semana é só buraco. Ver o o desmando da Águas de Manaus de perto, vocês vão chorar comigo, com as merdas dentro do Igarapé do Gigante.

A moradora chama atenção para as deficiências no esgotamento sanitário do lugar onde mora, onde obras da empresa provocaram transtornos, inclusive com consequências para a poluição do Igarapé do Gigante, pertencente à Bacia Hidrográfica do Tarumã. Após o desabafo, ela ainda conclui: “Falta muita água no Conjunto”.

A audiência também era comentada em tempo real nos grupos de whatsapp sobre mobilizações em torno das questões urbana e ambiental, onde uma liderança comentou:

O maior problema é que eles querem que os líderes comunitários trabalhem de graça pra empresa. Verificando vazamento e canos estourados pra enviar pra empresa. Esse trabalho tem que ser da empresa. E não dos líderes comunitários. Isto porque eles não dão nenhum real de abatimento na conta do líder. E nem colocam uma recarga no celular do líder. E para fazer vídeos e enviar para a empresa você tem que ter carga no teu celular. É como o gestor falou lá, são 1000 líderes trabalhando gratuitamente para a empresa Águas de Manaus.

A fala acima demonstra uma das estratégias da empresa, que é a individualização das demandas e sobrecarga das lideranças comunitárias, como uma forma de suprir a ausência de mecanismos de participação popular e controle social efetivo na gestão do saneamento.

Isso ficaria mais evidente após as denúncias de diversos moradores sobre cobrança indevida de taxas de esgoto em localidades onde não há rede coletora e onde há rede, mas não há conexão com as residências. Durante a audiência, esses casos foram confirmados por falas de moradores de comunidades nos bairros Raiz, Compensa, São Francisco e Conjunto Viver Melhor. Em todos esses casos, famílias estão sendo cobradas por um serviço que não está sendo prestado, isto é, o tratamento de esgoto em suas quatro etapas: coleta, transporte, tratamento e despejo.

A empresa responde 

Ao tomar a palavra, o presidente da Águas de Manaus limitou-se a anunciar números da empresa e obras para o futuro. Em suas palavras, não há dicotomia entre público e privado no saneamento, pois há metas a serem alcançadas e a concessionária precisa comprovar que tem condições de prestar o serviço. Em resposta aos moradores, a empresa cumpriu a tendência de invidivualização das demandas, garantindo que só havia cobrança da taxa de esgoto quando as residências estavam conectadas à rede coletora. Portanto, os casos trazidos durante a audiência pública seriam experiências isoladas, que seriam analisadas pela concessionária.

O presidente também defendeu a empresa das denúncias sobre redes de esgoto obstruídas e com vazamento, explicando a diferença entre uma rede de drenagem pluvial e uma rede de esgoto. Para ele, o problema se dá quando as pessoas conectam a estrutura de esgoto com a de a drenagem e isso seria o fator responsável pela obstrução da rede de esgoto e pelos vazamentos em via pública. Disse também que a lei Federal 14.026/2020 possibilita a cobrança da taxa de esgoto 1 ano após a rede coletora ser implementada em bairros e logradouros, sendo de responsabilidade do morador a conexão à rede.

Nem o presidente da Águas de Manaus e nem o diretor da Ageman justificaram o valor das taxas de água e esgoto cobradas. Apesar de terem sido inquiridos sobre os custos e cálculos para se chegar a um valor tão diferente de outras capitais, ambos foram evasivos em relação às particularidades de cobrança e valores em Manaus. O diretor da Ageman não respondeu sobre os relatórios entregues pela empresa. Por sua vez, representante da concessionária personalizou a questão, dizendo que acreditava nos relatórios e que na sua residência consumia água diretamente da torneira.

E como ficamos?

Após as respostas da empresa e da agência reguladora, era patente a insatisfação do público, sobretudo dos moradores presentes na audiência. Apesar de haver perguntas bastante diretas a serem respondidas, a empresa esquivou-se da maioria, sobretudo daquelas referentes a questões técnicas e orçamentárias que justificam o valor da tarifa.. Sandoval Rocha, representante do Fórum das Águas Amazonense, pontuou em sua fala sobre a discrepância entre os valores cobrados e a realidade socioeconômica local. Ele argumentou que 41% da população de Manaus está em situação de pobreza e 11% está em situação de extrema pobreza. Logo, não há modicidade da tarifa para mais da metade dos manauaras. Sobre os posicionamentos e falta de respostas da empresa e da agência reguladora, ele comentou:

Não se trata aqui, pelo que eu estou vendo, de casos isolados. Parece que toda a cidade tem tido problemas e esses problemas tem aumentado cada vez mais. E outra coisa: parece que as respostas não são satisfatórias. As justificativas não estão satisfazendo os moradores que estão aqui representando a população [...] Aqui não está se tratando só da empresa, mas a prefeitura também está envolvida a partir da Ageman, que é a agência reguladora. Uma outra coisa, e aí eu termino. Quando o representante da empresa diz que entre o serviço público e o serviço privado é uma dicotomia ilusória, eu discordo totalmente por três razões: na CPI foi feita uma pergunta ao representante da empresa da época e a pergunta era: “quanto a empresa tem lucrado?” E a resposta foi quase um bilhão. Hoje já passa de um bilhão de reais. Pra onde vai esse 1 bilhão de reais? Para os investidores, em outros estados e outros países. Se fosse uma empresa pública, esse valor ficaria aqui e seria investido para melhoria e expansão do serviço. Isso pra mim significa muito. Um outro elemento é a questão da participação social. Na empresa privada não existe participação social, da população chegar lá e dizer o que quer fazer e o que não quer. A empresa tem autoridade pra dizer o que faz e o que não faz, muitas vezes a partir de metas que não são alcançadas, como é o caso aqui. E o último aspecto é que em uma empresa pública o povo tem o poder de tirar ou não o gestor, o prefeito. E no caso da privatização não é assim, nós vamos ter que aguentar 45 anos de serviços precários!

A fala de Sandoval Rocha remete a princípios da gestão pública que visam garantir a transparência e controle social de serviços básicos essenciais como o saneamento. O fato de ser uma empresa privada dificulta o acesso a informações e a participação popular em decisões que tem impacto direto na vida da cidade. Em outras palavras, em Manaus ainda não sabemos por que pagamos uma das tarifas de água e esgoto mais caras do Brasil, apesar da riqueza em recursos hídricos e da má qualidade do serviço prestado.

Há ainda, outros elementos do debate que merecem atenção. É sabido ser de responsabilidade do morador a conexão de sua residência à rede de coleta de esgoto. No entanto, há um custo alto e transtornos envolvendo essas obras. Somam-se a isso outros problemas, como a adesão a um serviço cujas tarifas não estão justificadas, a falta de confiança na empresa e a falta de garantia sobre as etapas de transporte, tratamento e despejo adequado do esgotamento sanitário. Isto é, o morador deve pagar para se conectar à rede e pagar pela coleta dos seus dejetos sanitários sem saber como e nem para onde vai o seu esgoto.

Outra questão diz respeito às ligações da rede pluvial nas redes de esgoto. De fato, as falas dos moradores mostraram que há confusão entre a rede de esgotamento sanitário e a rede de águas pluviais. Enquanto a primeira conecta-se aos vasos sanitários, cuja coleta deve destinar os resíduos às Estações de Tratamento de Esgoto, a segunda trata da drenagem superficial, ou seja, a rede pluvial é aquela que transporta a água das chuvas, bem como a água consumida nas pias e chuveiros das residências. Ambas são redes distintas e não podem estar conectadas.

No entanto, a história da urbanização brasileira consistiu, de forma predominante em vários locais, na criação de moradia em primeiro lugar, para somente depois haver implementação de infraestrutura e serviços de saneamento. Logo, a crise no mundo rural, as dinâmicas migratórias e a ausência de políticas públicas habitacionais e de urbanização levou à criação de diversos bairros e comunidades sem saneamento ambiental. Com o passar do tempo, diante da necessidade de escoar suas águas e dejetos sanitários, moradores usaram as infraestruturas disponíveis e assim o fizeram por conta própria ou com anuência do poder público. Logo, se havia uma única rede, a mesma foi utilizada para esgoto sanitário e esgoto pluvial.

O argumento defendido aqui é o de que a ligação da rede pluvial na rede de esgoto é menos uma decisão individual de moradores e mais o resultado dos processos de formação de bairros e territórios populares não apenas em Manaus, mas no Brasil como um todo. A ligação referida pela empresa como “clandestina” é um arranjo da ordem do possível que possibilita a vida em diversas comunidades. Portanto, não se trata de um problema individual que deve ser resolvido mediante negociação com a empresa, mas de uma questão social que deve ser enfrentada com políticas públicas.

Uma semana após a audiência pública, o Fórum das Águas, moradores e outros atores políticos que estavam presentes dia 31 de março na CMM foram contactados em seu número pessoal pelo setor de responsabilidade social da Água de Manaus e chamados para uma reunião com a presidência da empresa na sua sede. Conforme anunciado na audiência, os episódios de cobrança indevida da taxa de esgoto relatados na audiência seriam tratados caso a caso, entre outras questões. O Fórum das Águas entende a necessidade de diálogo com a empresa e reconhece a intenção de resolução dos problemas apresentados na audiência. Porém, observa-se a mesma estratégia de individualização e personalização de questões que refletem de modo geral a situação do saneamento em Manaus e os efeitos da privatização do serviço. Entendemos também que participação e controle social não devem acontecer a portas fechadas. Por se tratar de uma concessão pública e de amplo interesse, o debate sobre água e saneamento deve ser aberto e aos olhos de todos, tendo como horizonte a garantia de políticas públicas eficazes e a realização do direito humano à água.

Link da Audiência Pública: https://www.youtube.com/live/KvBLwUX9_98

Pedro Paulo Soares

 

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