Em Manaus, o processo de privatização dos sistemas de
abastecimento de água e esgotamento sanitário ocorreu em julho de 2000. O
Ministério Público e outras organizações da sociedade civil denunciaram as irregularidades,
mas não conseguiram interromper esse processo, uma vez que os gestores públicos
estavam obcecados pela ideia e fascinados com as supostas vantagens do negócio.
As metas firmadas foram de grande importância para convencer
a população de que o negócio seria benéfico para Manaus. Segundo essas metas, hoje
toda a cidade teria acesso à água potável de forma regular e de boa qualidade.
O sistema de esgotamento sanitário também estaria quase universalizado, com uma
cobertura de 90% da cidade. Essas metas, porém, eram somente estratégias de
persuasão visando quebrar a resistência do manauense.
Ao longo dos últimos 23 anos, a concessão do saneamento vem
dividindo o território urbano em três categorias de acordo com a prestação dos
serviços: aquele que possui os serviços de abastecimento de água e esgotamento
sanitário, aquele que possui esses serviços de forma precarizada e aquele que
não os possui de forma alguma. Por conseguinte, os cidadãos radicados nessas
áreas foram classificados em categorias de primeira e segunda classe,
respectivamente.
Para os cidadãos de 1ª classe, a concessionária dispõe todos
os serviços. É uma classe pouco numerosa, que vive nos melhores bairros da
cidade. Esse grupo tem rendimento suficiente para arcar com o pagamento das
tarifas, por mais espoliativas que elas sejam. Essa classe tem o privilégio de
usufruir até dos serviços de esgotamento sanitário. De acordo com os dados do
Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS 2021), somente 25% de
Manaus ostenta essa regalia.
Os cidadãos de 2ª classe são aqueles para os quais a
concessionária dispõe serviços precários. Essa classe não tem acesso ao sistema
de esgotamento sanitário e o acesso à água não é regular, sendo afetada pelo
desabastecimento várias vezes por semana. Aqui, a qualidade da água também não
é satisfatória. Ao contrário do grupo anterior, esse grupo é bem mais numeroso.
São famílias que tem limitado poder econômico, não podendo pagar as elevadas
tarifas cobradas pela empresa. Não é difícil encontrar nesse grupo famílias com
faturas atrasadas e com o nome no Serasa.
Essas famílias constantemente reclamam da empresa de água,
sentindo na pele a falta ou a má qualidade dos serviços. Em uma apresentação de
repúdio realizada pelo Fórum das Águas (24 de agosto de 2023), uma das denunciantes
mostrou uma garrafa de água turva coletada no seu bairro, afirmando: “nós temos certeza que a nossa água é muito
doente, muito maléfica para a nossa saúde!”. No mesmo evento outra depoente
descreveu a sua surpresa em ir ao Procon-AM para denunciar a concessionária
Águas de Manaus e descobriu que era a própria empresa que atendia aos
denunciantes. Ao perceber que até o Procon-AM já havia se aliado ao negócio da
água, ela sentiu-se desamparada, pois não sabia a quem recorrer.
Essas pessoas são tratadas pela empresa como cidadãos de 2ª
classe. Junto a essa população encontram-se também um grupo que não usufrui de
forma nenhuma dos serviços. São dezenas de comunidades invisibilizadas pelo
mercado da água, pois não possuem o status de consumidores. A maioria dessas
famílias se encontra abaixo da linha da miséria, mora em terrenos irregulares e
palafitas, não aportando nenhum retorno econômico para a concessionária.
Vítimas da total exclusão são relegadas tanto pelos poderes públicos quanto
pelo mercado.
Trata-se de uma classificação imposta pela empresa com o
apoio do poder concedente (Prefeitura Municipal) e outras instituições
oficiais. Olhando para a privatização do saneamento de Manaus é possível dizer
que o mercado tem o poder de determinar quem é cidadão ou subcidadão. Quem
existe e quem é inexistente. A cidadania foi privatizada.
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