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Os pobres são excluídos dos direitos à água e ao saneamento

 EXCLUSÃO HÍDRICA

Essa é uma constatação de Leo Heller, pesquisador do Instituto Rene Rachou (Fiocruz Minas) e relator especial dos direitos humanos à água e ao saneamento da Organização das Nações Unidas (ONU), entre 2014 e 2020. Em parceria com o Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), o estudioso realizou uma palestra (17/04/2023), expondo o panorama mundial e nacional do direito humano à água e ao saneamento.

Heller demonstrou preocupação pelo tímido avanço na implantação desses direitos no Brasil e no mundo, ressaltando a necessidade de que os Estados assumam efetivamente a garantia desses serviços como obrigação. Ele defende que tais serviços sejam consolidados como direitos humanos, uma vez que os serviços públicos estão cada vez mais submetidos à lógica do mercado para beneficiar grandes empresas e financiadores. Essa lógica dificulta o acesso das populações mais vulneráveis a esses serviços.

O acesso à água e ao saneamento como direito humano implica uma virada paradigmática numa sociedade em que o mercado impõe fortes pressões sobre a vida das pessoas e das organizações. Ao contrário dos paradigmas que valorizam os investimentos, a lucratividade e o avanço tecnológico, o paradigma dos direitos humanos preconiza a realização das necessidades básicas da pessoa humana. Abordar a realidade a partir desta ótica muda tudo. Aqui, o ser humano ocupa o primeiro lugar e condiciona todo o resto.

A priorização dos direitos humanos supõe enxergar outras interfaces na sociedade. Este olhar impacta na gestão das políticas públicas, tomando como guia o atendimento das populações mais vulneráveis cujas vidas são ameaçadas e ignoradas pelo capital e pela técnica. O paradigma dos direitos humanos funciona com a ideia de reconhecimento da dignidade humana, superando as divisões sociais de classe, raça e gênero. Além disso, as implicações jurídicas fornecem amparo para reivindicações de serviços básicos.

Aprovados pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2010, esses direitos ainda não constam na Constituição brasileira. Estamos bastante atrasados neste reconhecimento e isso contribui para a morosidade do poder público na provisão dos serviços de água e esgoto para toda a população. Sob fortes críticas da sociedade civil, o novo marco regulatório aprovado em 2020 não menciona os direitos humanos nas determinações sobre a política de saneamento no Brasil. Os direitos humanos implicam exigências que não geram retornos econômicos, mas compromissos de outra ordem, como solidariedade, justiça e paz. 

A ausência dos direitos humanos na legislativa não é ingenuidade nem descuido, mas estratégia dos grandes empresários, que resistem à ideia de que todas as pessoas tenham direitos fundamentais a serem garantidos pela sociedade. O que buscam são espaços cada vez mais amplos para ampliarem os seus rendimentos, mesmo às custas de serviços essenciais, excluindo grandes parcelas da população. No entanto, é no mínimo temerário condicionar a satisfação de necessidades básicas ao pagamento de tarifas inacessíveis a grandes contingentes de seres humanos.

Para ilustrar a violação dos direitos à água e ao saneamento, Leo Heller recorre aos dados da ONU, revelando que 2 bilhões de pessoas não possuem acesso garantido à água potável (26% da população mundial). Ademais, 3,6 bilhões de pessoas não têm acesso garantido aos serviços de esgoto (47% da população mundial). No Brasil, o especialista lança mão do PLANSAB e frisa que 40% da população não têm acesso à água potável e 45% não têm acesso ao esgotamento sanitário. Esses dados tornam as metas de universalização do novo Marco Regulatório uma verdadeira ilusão sem nenhuma aderência à realidade.

Heller lançou criticas contundentes ao discurso da privatização que ganha força no Brasil nos últimos anos. Para o professor, trata-se de uma formação arbitrária dizer que é preciso privatizar os serviços de água e esgoto para que eles possam ser universalizados a partir dos financiamentos privados. Para mostrar essa inconsistência discursiva, ele frisa que, salvo reduzidas exceções, nenhum país do mundo universalizou os seus serviços pela privatização.

Ao contrário, na grande maioria das privatizações as empresas não usam os seus próprios recursos para atender a população, mas esperam pelas tarifas cobradas aos consumidores, por recursos provenientes dos cofres públicos e por empréstimos “cômodos” concedidos por bancos estatais. É notável também a má qualidade dos serviços realizados pelas empresas, uma vez que economizam nos investimentos priorizando lugares com maior capacidade de retorno econômico em detrimento de outras localidades situadas nas periferias e zonas de difícil acesso.

A privatização desses serviços tem gerado grandes contrações e iniquidades em Manaus. Os preços das tarifas são colocados acima das possibilidades de pagamento das populações mais pobres, acarretando grave violação dos direitos humanos. São 23 anos de sofrimento produzidos pela precariedade dos serviços prestados pelas concessionárias. Atualmente, a concessão privada passa pela terceira investigação instalada na Câmara dos Vereadores do Município, mostrando o grau de insatisfação dos serviços entregues à população.

A empresa prioriza os interesses dos investidores que buscam lucros a qualquer custo. As necessidades da população, principalmente aquelas mais vulneráveis, são colocadas em segundo plano. Espoliação hídrica tem sido a palavra adotada pelos especialistas para se referir à gestão privada dos serviços de água e esgoto em Manaus. Trata-se da violação de direitos fundamentais em nome da produção de dividendos para enriquecer aqueles que já são ricos. Tudo isso às custas de serviços precários e inadequados: intermitência no fornecimento de água, inexistência de serviços de esgotamento sanitário, cobranças indevidas, rompimentos de adutoras, quebra de calçadas, tarifas abusivos, poluição de rios e igarapés, exclusão de comunidades vulneráveis, falta de informações e ausência de participação social.

Essa é somente uma das faces perversas que tem configurado a gestão da água em Manaus. Ao lado da desigualdade econômica, outras desigualdades contribuem para a violação dos direitos à agua e ao saneamento: desigualdade de gênero, desigualdade de raça, desigualdade geográfica, desigualdade espacial, desigualdade educacional. Para Leo Heller, tais marcadores precisam ser levados em consideração para que o direito humano à água seja efetivado no Brasil e no mundo, sem deixar ninguém de fora.

Diante dessas agressões do mercado hídrico contra o ser humano, o pesquisador lembra o evento da Guerra da Água ocorrido na Bolívia (ano 2000). Esta ocorrência foi fruto da insatisfação popular causada pela gestão privada na cidade de Cochabamba, culminando em violência, destruição e mortes. Tais acontecimentos remetem às atuais insatisfações da população de Ouro Preto (Minas Gerais), onde o povo tem se rebelado contra a privatização da água realizada em 2019. O conflito vem sendo ocultado pelas mídias de mercado, mas têm enorme relevância como mais um caso de análise que mostra a incoerência da política de privatização para os serviços de água e esgoto.

Se quisermos que os setores mais pobres e marginalizados da sociedade tenham acesso a esses serviços essenciais é necessários uma mudança radical de paradigma caultural, favorencendo uma visão social em que os direitos humanos e da natureza sejam orientadores e articuladores da vida social. Segundo Leo Heller, somente através dessa mudança evitaremos que a ausênciadeses serviços sejameternizada entre os mais pobres.

Sandoval Alves Rocha


IHU Unisinos: https://www.ihu.unisinos.br/628623-os-pobres-estao-excluidos-do-direito-a-agua-artigo-de-sandoval-alves-rocha

Observatório ONDAS: https://ondasbrasil.org/os-pobres-estao-excluidos-do-direito-a-agua/

Amazonas Atual: https://amazonasatual.com.br/os-pobres-estao-excluidos-do-direito-a-agua/


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