"Para alcançarmos a universalização (do acesso á água) não basta mudar de empresa, mantendo os mesmos procedimentos. Já mudamos 4 vezes, mas os problemas continuam os mesmos. É necessário adotar outras lógicas. Lógicas que não priorizem os lucros antes do serviço às comunidades" escreve Sandoval Alves Rocha, doutor em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciências Sociais pela Unisinos/RS, bacharel em Teologia e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (MG), membro da Companhia de Jesus (jesuíta), trabalha no Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), em Manaus.
Eis o artigo.
Na última quarta-feira (05 de abril), ocorreu a 5ª reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada na Câmara Municipal de Manaus (CMM), reunindo parlamentares, representantes da Agência Reguladora dos Serviços Públicos Delegados do Município de Manaus (Ageman) e da Concessionária Águas de Manaus (Grupo Aegea Saneamento). No evento, também estiveram presentes representantes do Fórum das Águas e lideranças de bairros da cidade.
A iniciativa visa investigar a precariedade dos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário na cidade de Manaus. A população vem sofrendo com a gestão privada iniciada no ano 2000. Já são 4 empresas que se alternam durante o atual ciclo privatista, cada uma delas realizando serviços inadequados e apresentando baixo desempenho: Lyonnaise des Eau – Suez, Soluções para a Vida – Solvi, Águas do Brasil e Aegea Saneamento. Essa atuação já provocou a criação de duas CPIs (2005 e 2012) e milhares de denúncias oficiais.
Os parlamentares ouviram o depoimento da Ageman, que tem a incumbência de fiscalizar os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário realizados pela concessionária Águas de Manaus. Grande parte das perguntas feitas pelos vereadores não recebeu respostas convincentes. Ao contrário, as respostas foram contraditórias, como mencionou um dos parlamentares. Outras perguntas nem foram respondidas, como frisou outro vereador. Se a Agência Reguladora não conseguiu convencer os vereadores, menos ainda aplacou a indignação da sociedade manauense, que sofre com a falta ou a precariedade dos serviços em vários bairros e localidades.
O depoimento gerou a forte impressão de haver uma cumplicidade entre a Agência Reguladora e a empresa Águas de Manaus. A Ageman tem demonstrado mais preocupação em defender a concessionária do que fiscalizar e denunciar o seu baixo desempenho. Isso ficou evidente quando o presidente da instituição afirmou que na sua gestão não aplicou nenhuma multa contra a concessionária e na gestão anterior somente 4 penalidades foram impostas a empresa de água e esgoto. A omissão da Agência fica patente na medida em que Manaus se encontra entre as 20 piores cidades do país, segundo o atual ranking do Instituto Trata Brasil, que avalia a evolução dos serviços de água e esgoto no território nacional.
Durante o depoimento foi confirmado que falta água todos os dias na cidade de Manaus, principalmente nas zonas periféricas. Há um fornecimento descontínuo em vários bairros da cidade, mas as tarifas chegam sem atraso e com sistematicidade. Além da falta de água, os parlamentares identificaram outras irregularidades nos serviços da empresa: recapeamentos inadequados, destruição de calçadas, pressão insuficiente da água, rompimentos frequentes de adutoras e a má qualidade da água fornecida. Destacaram também o descumprimento das metas contratuais.
De acordo com as repostas do depoente, também é possível averiguar a indiferença do poder municipal quanto às tarifas exorbitantes dos serviços de esgotamento sanitário. Segundo o depoente, o poder concedente nunca apresentou nenhuma proposta que promovesse a redução dos valores, demonstrando uma total conivência com as cobranças exorbitantes efetuadas pela empresa Águas de Manaus. Essa conivência com os desmandos da concessionária tem gerado a suspeita de que há uma prática de pagamento de propina envolvendo o prefeito e a empresa privada em questão.
Merece atenção o posicionamento da Agência Reguladora, ao sugerir que o abastecimento de água já foi universalizado em Manaus. Para chegar a essa conclusão ela teve que calar muitas vozes e ignorar muitas comunidades que sobrevivem em Manaus sem os serviços de água e esgoto: comunidades indígenas e ribeirinhas, ocupações urbanas e periferias. Essa postura confirma a suspeita de cumplicidade entre a Agência e a empresa que ela deveria fiscalizar. Não há divergências entre a Ageman e a concessionária Águas de Manaus, de forma que uma pode falar pela outra. Com essa atitude, a Reguladora reforça a invisibilidade das comunidades mais pobres, contribuindo para que a desigualdade continue sendo uma das características marcantes da capital amazonense.
A concessão dos sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário tem construído uma história sombria, atraindo neste momento a terceira Comissão Parlamentar de Inquérito. Todas estas investigações produziram o consenso de que a quebra do contrato de concessão deve ser realizada, mas nenhum prefeito acatou tal recomendação. O resultado dessa atual investigação confirmará os resultados dos inquéritos anteriores, evidenciando a inviabilidade da gestão privada para a universalização dos serviços.
Para alcançarmos a universalização não basta mudar de empresa, mantendo os mesmos procedimentos. Já mudamos 4 vezes, mas os problemas continuam os mesmos. É necessário adotar outras lógicas. Lógicas que não priorizem os lucros antes do serviço às comunidades. É necessária uma gestão mais próxima da democracia, onde a população possa decidir o que deseja para si, sem submeter-se aos ditames dos investidores e financistas. Precisamos de uma gestão pública e autônoma.
https://www.ihu.unisinos.br/627822-cpi-da-aguas-de-manaus-confirma-abuso-da-concessionaria
Comentários
Postar um comentário